Voltar à casa dos pais após longos vinte anos de ausência é uma sensação que Fábio não conseguia descrever. A única cena que ainda restava na sua memória se misturava com a movimentação adormecida do último dia vivido naquele local. Uma grande angustia lhe apertava o peito e um gosto amargo começou a embrulhar seu estômago.
Todo aquele sentimento guardado durante anos parecia reprimir seus passos, os quais ficavam cada vez mais lentos até pararem. Um ar gélido abraçou-lhe as pernas. A sala de piso frio continuava idêntica ao último dia. O silêncio o ensurdecia diante de tantas recordações. As sensações foram se tornando sons, vozes, gritos e finalmente imagens. Agora se lembrava de tudo. Pressionou os ouvidos com as mãos, mas não adiantava. Seus pensamentos eram entrecortados, alguns ainda pareciam acorrentados, presos. Havia sido forçado a esquecer...
Olhou para a parede. Teias de aranha e muita poeira davam ao local um tom cadavérico. As rachaduras da madeira velha que formavam o forro acinzentado pareciam contorcer em estalos secos forçados pelo vento que entrava pela janela de vidros quebrados. O tempo foi efetivo com o seu abandono. Por onde passou deixou marcas. Porém, maiores eram as deixadas na vida de Fabio. Sentou-se no chão. Fechou os olhos. Rugas! Começou a pensar...
No ultimo dia, pessoas corriam. Não lembrava mais seus rostos. A vida sempre fora muito sofrida naquela casa. Não eram pobres; os dias que eram cruéis. Mas o tarde era de festa! A manifestação contra a ditadura militar havia sido modesta, não dava para se negar. O bom rapaz, ainda muito jovem, estudante universitário, sorria com um ar de trabalho bem feito. Era difícil mobilizar as pessoas no Brasil. Elas ficam cegas muito facilmente, pensava. Se não por medo, por acomodação ou ainda pior: talvez não queiram dar o braço a torcer, enxergar a realidade. Ele só queria justiça!
Adultos e crianças corriam e dançavam e gritavam. O disco de vinil cantava chiando, mas, em meio a tanta animação, nem se escutava o ruído. E festejavam uma liberdade sonhada por todos. A mãe de Fábio chamou-o para o canto. Ele havia prometido que, se a manifestação desse certo, dançaria valsa com ela. Uma proeza para o perna de pau! - era assim que a mãe o chamava. Ela ria. Por dentro, tinha medo. Ainda estava aflita, como se previsse alguma coisa ruim.
Deram as mãos. Alinharam os pés. Olharam nos olhos. De repente a música parou.
- É a polícia! Você, rapaz, está preso por conspirar contra a nação!
O pai de Fabio estremeceu. Ele era um senhor simples, de cabelos brancos. Nunca gostou de política e não concordava com o filho se arriscando por ela. E agora estava a vê-lo sendo preso. Fabio via seus sonhos e ideais virem abaixo. Foi torturado, preso, passou fome e sede. Por fim, foi exilado após confessar ter encabeçado a manifestação contra a ditadura.
Abriu os olhos. A casa estava suja. Ele, velho. Como haviam envelhecido seus pais? Nunca saberia. Após vinte anos, o que lhe restava era somente sua anistia, o retrato em cima da mesa e, no ar, a melodia da valsa que nunca dançou.
Felipe N.
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